sexta-feira, 28 de fevereiro de 2003

O último tocador de tambu

Plínio Marcos
Nas quebradas do mundaréu, bem onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mexe e vira havia festa de tambu. Tambu é uma dança de umbigada. Homens de um lado, mulheres do outro, o cantador improvisa versos no meio da roda, canta primeiro pras mulheres, depois para os homens, até todos poderem cantar juntos; então o cantador se afasta e, batendo palmas no ritmo, homens e mulheres vão se aproximando até darem umbigada. Três instrumentos entram no tambu – pau-oco ou sete léguas, um pau de sete metros com um couro esticado na ponta capaz de ecoar na mata por sete léguas; quingengê, uma espécie de atabaque pequeno; e chocalho.

O Almofadão, crioulo cheio de truques, gostava de se apresentar bem trajado, com roupa branca, de um branco de anúncio de televisão, daí o apelido – era um grande puxador de tambu. Mandava ver, dava um recado sentido. E todos o respeitavam. Não havia batuqueiro que dispensasse as festas onde o Almofadão cantava e batia tambu. Por essas e outras, o coroa reinava.

E seu filho, o Almofadinha, desde pequeno dava as fuças nesse pagode, dizendo co pé com príncipe que era. Por ser pivete, abafava: O pai não descuidava, levava o moleque num cortado.

Antes de saírem, o velho Almofadão examinava o filho de cima a baixo, pra ver se estava tudo como mandava o figurino. Quando retornavam das festanças, conferia mais uma vez seu menino se ele não estivesse coberto de poeira, tal qual um tatu, levava cascudo, pois era sinal de que não tinha se espalhado como devia um bom batuqueiro.

Assim, o Almofadinha foi crescendo e ganhando nome no seu pedaço O velho Almofadão se sentia tranqüilo para morrer. Sabia que, quando fosse falar com Deus, o tambu não iria pro beleléu. Seu filho amado estaria firme para manter o axé da família. Remando o barco mesmo contra a maré. E salvaria o tambu apesar da onda de música estrangeira que já naquele tempo era só o que se escutava, nos veículos de comunicação. Foi por essa fé que, no dia em que o coração rateou, o velho Almofadão nem se afobou. Deitou, fechou os olhos na proteção dos orixás, se apagou.

Pro Almofadinha, perder o pai – antes de mais nada um companheirão de batuque. – foi um golpe de entortar o patuá. Ficou jururu. Mas deu descanso de alça pro Almofadão com todas as honras de mestre batuqueiro. Fez o couro do cabrito gemer; chorou no quingenguê até botarem terra em cima da carcaça do velho Almofadão. E, diante da cova rasa que coube ao Almofadão, o Almofadinha jurou, pela luz que o iluminava, que seria um tocador de tambu até seu último suspiro. Se tivesse filhos passaria a eles os macetes do negócio.

Porém ( sempre tem um porém ), logo a mãe do Almofadinha esticou as canelas, com saudades do marido. Ao ficar sozinho, o Almofadinha, desacorçoado naquele lugar onde tudo lembrava seus mortos queridos, juntou seus trapinhos, seu quingenguê e mais uns badulaques e se arrancou. Sai sem rumo, à procura de um mocó pra começar nova vida. Nessas andanças, o Almofadinha teve que bater perna à toa pelos caminhos esquisitos do roçado do bom Deus.

Pra se escorar, resolveu bater seu quingenguê nos botequins, esperando que algum bobalhão, entusiasmado com seu som, lhe adiantasse alguma graninha. Qual o que..

Foi tocar e causar espanto: ninguém entendeu. As orelhas viciadas em ritmos estrangeiros estranharam aquela batida. De inicio, pensaram que o Almofadinha era africano, só quando abriu o bico, viram que era brasileiro.

E aí gozaram o desgraçado as baldas. Encabulado o Almofadinha puxou uns versos pra provocar as moças, versos de sucesso garantido no seu antigo pedaço:

“Campinas, Tietê, Pederneiras/ Aqui em São Paulo não tem/ Moça batuqueira”

Coitado! Tomou a maior vaia da paróquia e, depois da vaia, esculachos mil. Invocado com o passa-fora, o Almofadinha meteu o falho dentro e se retirou. Foi matutar no seu canto.

Por acaso, escutou uma música tocando no rádio. Estrangeira, naturalmente. Mas o Almofadinha não se mancou, era música e era isso o que importava. Dono de um ouvido privilegiado, prestou atenção e morou no ritmo. Achou uma sopa. Bateu no seu quingenguê e não teve chibu. Na sua bobeira, até achou legal. Continuou tocando e não demorou para se sentir à vontade: Demorou menos ainda pra aparecer um freguês todo animado com a batida do Almofadinha, anunciando com banca de entendido: “poxa, bicho” Tu é o máximo nessa tumbadoura. Chega mais”.

O Almofadinha se aproximou, entrou de sola com o som que pegou de orelhada. Só recebeu elogio. “bárbaro”, ”supermoderno”, ”demais”, “ o bicho curte legal”, “é bidu mesmo”, animava a galera.

E, enganbelado o Almofadinha entrou de gaiato na pala da moçada. Esqueceu rápido sua origem, seu velho pai, o Almofadão companheiro e amigo. Aprendeu as milongas da nova curriola, os ritmos das rádios. Foi convidado para fazer parte de um conjunto de garotões cabeludos. Aceitou. E passou a chiar coisas de lascar, com a boca mole de mascar chicletes:

- Sem essa, bicho! Tambu já era.

Deve fazer o velho Almofadão se remexer na cova de tanto desgosto.

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