sexta-feira, 28 de fevereiro de 2003

História

José A. Goulart

Fragmento de documento, onde a irmandade do Rosário pede permissão para fazer uma procissão no Império.
“O Juiz e Irmãos de Nossa Senhora do Rosário”, dizia Caetano Pinto a Antônio Carlos, pediram a V.Mcê., para saírem ao amanhecer de 17 para 18 do corrente com sua bandeira da mesma Senhora pelas ruas desta cidade, acompanhada por eles, e pelas irmãs da dita irmandade, com toque de instrumentos, zabumbas, clarinetes, jogos de ar: e V.Mcê. deferiu-lhes como eles pediram.”

“O exemplo da Capitania da Bahia, cujo incêndio pela sua proximidade pode facilmente atear-se em Pernambuco; o desassossego que tivemos aqui o ano passado; e as suspeitas ainda não desvanecidas de um levante premeditado em Alagoas, exigem grande circunspeção sobre o ajuntamento de escravos, principalmente a noite. A Ordenação do Livro 5º,T.70 § 1º parece-me que nas circunstâncias atuais deve ter uma prudente aplicação no Recife e Olinda, e fogos de artifício sabe V.Mcê que são proibidos por diversas leis. “Recomendo pois a V.Mcê e positivamente lhe ordeno, que tenha a maior cautela em conceder estas licenças; antes, se pudesse conseguir que os habitantes de Olinda não misturassem nas suas festas coisas profanas com divinas, faria V.Mcê um serviço muito agradável a Deus, e a Sua Alteza, Nosso Religiosíssimo Soberano. “Deus guarde a V.Mcê. Recife, 16 de dezembro de 1815. a) Caetano Pinto de Miranda Montenegro e Sr. Ouvidor-Geral Antônio Carlos Ribeiro de Andrada.

Fonte: Da Palmatória ao Patíbulo, José Alípio Goulart, Temas Brasileiros, Castigos de Escravos no Brasil, ed. Conquista

O último tocador de tambu

Plínio Marcos
Nas quebradas do mundaréu, bem onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mexe e vira havia festa de tambu. Tambu é uma dança de umbigada. Homens de um lado, mulheres do outro, o cantador improvisa versos no meio da roda, canta primeiro pras mulheres, depois para os homens, até todos poderem cantar juntos; então o cantador se afasta e, batendo palmas no ritmo, homens e mulheres vão se aproximando até darem umbigada. Três instrumentos entram no tambu – pau-oco ou sete léguas, um pau de sete metros com um couro esticado na ponta capaz de ecoar na mata por sete léguas; quingengê, uma espécie de atabaque pequeno; e chocalho.

O Almofadão, crioulo cheio de truques, gostava de se apresentar bem trajado, com roupa branca, de um branco de anúncio de televisão, daí o apelido – era um grande puxador de tambu. Mandava ver, dava um recado sentido. E todos o respeitavam. Não havia batuqueiro que dispensasse as festas onde o Almofadão cantava e batia tambu. Por essas e outras, o coroa reinava.

E seu filho, o Almofadinha, desde pequeno dava as fuças nesse pagode, dizendo co pé com príncipe que era. Por ser pivete, abafava: O pai não descuidava, levava o moleque num cortado.

Antes de saírem, o velho Almofadão examinava o filho de cima a baixo, pra ver se estava tudo como mandava o figurino. Quando retornavam das festanças, conferia mais uma vez seu menino se ele não estivesse coberto de poeira, tal qual um tatu, levava cascudo, pois era sinal de que não tinha se espalhado como devia um bom batuqueiro.

Assim, o Almofadinha foi crescendo e ganhando nome no seu pedaço O velho Almofadão se sentia tranqüilo para morrer. Sabia que, quando fosse falar com Deus, o tambu não iria pro beleléu. Seu filho amado estaria firme para manter o axé da família. Remando o barco mesmo contra a maré. E salvaria o tambu apesar da onda de música estrangeira que já naquele tempo era só o que se escutava, nos veículos de comunicação. Foi por essa fé que, no dia em que o coração rateou, o velho Almofadão nem se afobou. Deitou, fechou os olhos na proteção dos orixás, se apagou.

Pro Almofadinha, perder o pai – antes de mais nada um companheirão de batuque. – foi um golpe de entortar o patuá. Ficou jururu. Mas deu descanso de alça pro Almofadão com todas as honras de mestre batuqueiro. Fez o couro do cabrito gemer; chorou no quingenguê até botarem terra em cima da carcaça do velho Almofadão. E, diante da cova rasa que coube ao Almofadão, o Almofadinha jurou, pela luz que o iluminava, que seria um tocador de tambu até seu último suspiro. Se tivesse filhos passaria a eles os macetes do negócio.

Porém ( sempre tem um porém ), logo a mãe do Almofadinha esticou as canelas, com saudades do marido. Ao ficar sozinho, o Almofadinha, desacorçoado naquele lugar onde tudo lembrava seus mortos queridos, juntou seus trapinhos, seu quingenguê e mais uns badulaques e se arrancou. Sai sem rumo, à procura de um mocó pra começar nova vida. Nessas andanças, o Almofadinha teve que bater perna à toa pelos caminhos esquisitos do roçado do bom Deus.

Pra se escorar, resolveu bater seu quingenguê nos botequins, esperando que algum bobalhão, entusiasmado com seu som, lhe adiantasse alguma graninha. Qual o que..

Foi tocar e causar espanto: ninguém entendeu. As orelhas viciadas em ritmos estrangeiros estranharam aquela batida. De inicio, pensaram que o Almofadinha era africano, só quando abriu o bico, viram que era brasileiro.

E aí gozaram o desgraçado as baldas. Encabulado o Almofadinha puxou uns versos pra provocar as moças, versos de sucesso garantido no seu antigo pedaço:

“Campinas, Tietê, Pederneiras/ Aqui em São Paulo não tem/ Moça batuqueira”

Coitado! Tomou a maior vaia da paróquia e, depois da vaia, esculachos mil. Invocado com o passa-fora, o Almofadinha meteu o falho dentro e se retirou. Foi matutar no seu canto.

Por acaso, escutou uma música tocando no rádio. Estrangeira, naturalmente. Mas o Almofadinha não se mancou, era música e era isso o que importava. Dono de um ouvido privilegiado, prestou atenção e morou no ritmo. Achou uma sopa. Bateu no seu quingenguê e não teve chibu. Na sua bobeira, até achou legal. Continuou tocando e não demorou para se sentir à vontade: Demorou menos ainda pra aparecer um freguês todo animado com a batida do Almofadinha, anunciando com banca de entendido: “poxa, bicho” Tu é o máximo nessa tumbadoura. Chega mais”.

O Almofadinha se aproximou, entrou de sola com o som que pegou de orelhada. Só recebeu elogio. “bárbaro”, ”supermoderno”, ”demais”, “ o bicho curte legal”, “é bidu mesmo”, animava a galera.

E, enganbelado o Almofadinha entrou de gaiato na pala da moçada. Esqueceu rápido sua origem, seu velho pai, o Almofadão companheiro e amigo. Aprendeu as milongas da nova curriola, os ritmos das rádios. Foi convidado para fazer parte de um conjunto de garotões cabeludos. Aceitou. E passou a chiar coisas de lascar, com a boca mole de mascar chicletes:

- Sem essa, bicho! Tambu já era.

Deve fazer o velho Almofadão se remexer na cova de tanto desgosto.

O Samba bate outra vez

A família PNS (foto: PNS/02)


...................................................Ponte Preta, janeiro 2.002

Aconteceu com grande entusiasmo a primeira roda do Projeto Nosso Samba no domingo 26 de janeiro. A roda que começou um pouco atrasada, contou com a participação da comunidade e recebeu convidados que atuaram de maneira muito particular na história do samba paulista: Hélio Bagunça (Camisa Verde ) e o Tião Preto(Vila Virou).

Os integrantes do PNS estavam com uma afinação sem igual, levando sambas belíssimos e tradicionalmente cantados nas rodas do projeto.

Uma das motivações particulares para alguém se dispor a visitar o PNS é conhecer a dedicação dos integrantes pela execução dos sambas da velha e nova guarda junto com a oportunidade de desfrutar o convívio poético com os compositores do projeto. O entusiasmo do grupo, contagiou a todos.

As rodas sempre tem um direcionamento musical, que foi alterado pela presença do surpreendente sambista Hélio Bagunça. Ele que cantou sambas das velhas guardas da escola Camisa Verde e Portela e do compositor portelense Paulo César Pinheiro, em três vezes se repetiu exaltando sua escola de coração, o partido de paixão declarada a Escola de Samba Camisa Verde e Branco. Todo indivíduo que viveu intensamente a vida, principalmente no samba, tem muitas estórias pra contar. No caso do Sr. Hélio é muito envolvente ouvir o relato de suas experiências e atitudes nem sempre compreendidas e até mesmo questionáveis ( ele tem uma fala que não aceita discordância), exibiu ginga ao dançar, exibiu poesia ao cantar, exibiu dignidade ao narrar passagens de sua estória no mundo do samba.

O também portelense Tião Preto, mandou belíssimos sambas do Paulinho da Viola e da sua querida Portela, antes que deixasse a roda, mandou com todo seu encantamento o magnífico samba-enredo sobre a guerra de Canudos da escola de samba Em Cima da Hora (Marcados pela própria natureza) Este samba junto com o imperiano, Heróis da Liberdade de Silas de Oliveira, são composições com tamanha inspiração poética e compromisso histórico que deveriam ser cantados em toda roda de samba, mostrando a resistência dos oprimidos da nossa história, deveriam ser ouvidos em pé com uma marcação de arrepiado silêncio.

O Projeto Nosso Samba , começará o ano arrasando, participando do programa carnavalesco do SESC Ipiranga, no programa ‘Sambas de Bumbo e Bambas do Samba’, onde pela primeira vez estarão atuando conjuntamente os novos terreiros de samba paulista junto com o ignorado ‘samba rural paulista’. Aqui cabe um esclarecimento cultural.. Todos nós tivemos uma formação, através da indústria cultural e não das vivências em terreiros ou das quadras das escolas de samba, perdemos uma qualidade essencial da nossa cultura popular, que é estudar, compreender, e valorizar a história cultural dos oprimidos na cidade de São Paulo. Estes oprimidos escravos e imigrantes forjaram involuntariamente nas periferias de São Paulo, uma prática musical e religiosa (as romarias) desenvolvidas em ambientes deliberadamente isolados, econômica e urbanisticamente. Só para exemplificar, todas as manifestações musicais populares eram vigiadas pela polícia e seus integrantes fotografados e devidamente fichados. Não devemos esquecer que, carregar violão em punho, foi sinônimo de vadiagem e portanto de prisão

A roda foi encerrada com uma intervenção histórica do Sr. Hélio, que expôs as relações dos diferentes grupos de tiririca sejam da Barra Funda, da Praça da Sé ou do Largo da Banana. O que importa é que todos eram sambistas em sua essência, com uma atuação assinalada pela perseguição policial a qualquer manifestação popular. Entre os limites da memória, recuperou-se a estória da extinta escola Unidos dos Campos Elíseos, de uma época onde para se atravessar a cidade e, após o trabalho fazer uma roda de samba na esquina, se levava o tamborim embrulhado em jornal, junto com a marmita, escondido da polícia. Toda vez que um surdo bate novamente o toque de reunir, sopramos a brasa da memória de todos aqueles que anonimamente deram vida ao samba, possibilitando de alguma maneira, expressar com força, a poesia dos oprimidos.
.......................................................Rubens Grego (Rubão)

Mestre Toniquinho Batuqueiro*

A vida de Toniquinho Batuqueiro, nascido a 25 de fevereiro de 1929 em Pau Queimado - Piracicaba, compõe um verdadeiro quadro da história do samba paulistano.

Instalando-se a princípio no Parque Peruche, na capital, local de importante fixação de negros vindos das chamadas zonas batuqueiras do oeste paulista (onde ocorre o "Batuque de umbigada" ou "Tambu" pelos seus dançadores, e também o "Samba Rural Paulista" assim denominado por Mário de Andrade) circulou por todos os pontos de samba e tiririca (espécie de capoeira de sotaque paulista) na cidade, como a Vila Maria, a Vila Santa Maria, Casa Verde, Largo da Banana, Largo das Perdizes, área sul da Sé.

Ainda no tempo do bonde, veio trabalhar como engraxate na Praça da Sé onde conviveu com bambas como Geraldo Filme, Synval e Germano Mathias.

O ponto, naquele tempo, era bom para engraxates, como dizia Toniquinho, pois todos os bondes vinham para a Praça da Sé trazendo o povo com o pé todo cheio de lama, já que eram poucas as ruas asfaltadas naquele São Paulo antigo.

Todo final de expediente terminava em batucada na lata de graxa e em uma ou outra roda de tiririca, sempre com muita atenção contra a rigorosa perseguição policial. Após uma estada no Rio, onde morou na Lapa trabalhando como entregador de pão, retorna à São Paulo, onde participa da formação da Unidos do Peruche e da Unidos da Vila Maria. Nesse período instala-se em Osasco, na grande São Paulo, na qual desenvolveu alguns projetos como a desativada Praça do Samba, espaço para o cultivo de velhos e apresentação de novos talentos.

A vivência musical de Toniquinho, mesclando informações do Tambu vivido na infância com influências das marchinhas do carnaval carioca e paulista, todas remexidas no caudilho musical negro que eram as Festas de Bom Jesus do Pirapora, fizeram de Toniquinho um dos maiores ritmistas do país, talento reconhecido por nomes como Mestre Fuleiro do Império Serrano, e também por sua profunda vivência como juri de bateria nos diversos concursos carnavalescos pelo país.

Sua convivência com Plínio Marcos também se destaca, personalidade que ainda lhe inspira profunda devoção. Nos anos de chumbo da ditadura, Toniquinho, Geraldo e Zeca da Casa Verde gravam o antológico "Plínio Marcos em Prosa e Samba", hoje objeto de colecionadores, onde contam e cantam suas histórias. Esse mesmo grupo participa de várias peças teatrais criadas pelo Plínio, compondo ou interpretando a si mesmos, como na peça Barrela, que mostra o cotidiano de uma típica cela de prisão.
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(*)Toniquinho: Embaixador do Samba. Foto: PNS

Marcelo A. Benedito

O Samba está de luto

À saudosa Dona Zica, saudações sambísticas do Projeto Nosso Samba de Osasco.

A família Projeto Nosso Samba se solidariza com toda a comunidade do samba, especialmente a mangueirense e chora a morte da já mui saudosa Dona Zica, legitimamente reverenciada como a Primeira Dama da Estação Primeira de Mangueira.

A passagem desta tão brilhante e relevante figura da e na história da nossa cultura brasileira e popular, em muito nos enobreceu e enriqueceu, e decerto o legado por ela deixado e que tão orgulhosamente herdamos nos será de grande valia para que continuemos firme nessa incessante luta em defesa do que nos é caro demais, a saber: o nosso velho e bom samba.