quarta-feira, 30 de abril de 2003

O Surdo

Foram batidas rigorosamente simétricas. Contava-se, um, dois, três, quatro, compassado com a contagem dos segundos, e aí, mais uma vez ouvia-se a batida. Um lamento cruel, silencioso, doloroso, provocando a fantástica imagem da dor. Levando-nos, imortais que somos, nós que fugimos do inevitável, ao silêncio fúnebre, ao cheiro de cravos, rosas, incensos e velas.

Naquele dia, o dia mais perverso do ano, o surdo, o regente da euforia dos grandes espetáculos, regia a tristeza. O coral composto por quinhentas vozes afinadas, quinhentas vozes de sambistas, entoava:

"...O samba não levanta mais poeira/ O asfalto hoje cobriu nosso chão/ Lembranças eu tenho da saracura (...) Bixiga hoje é só arranha-céu/ E não se vê mais a luz da lua..."

A música que outrora fizera vibrar as passarelas, agora era cantada lentamente como a batida do surdo. Bem-te-vis, homens, pombos, rolinhas e mulheres, tentavam esconder as lágrimas. Naquele momento o bandido mais desumano, caso lá se encontrasse, certamente teria sua alma persuadida.

Ao final da despedida, um forte silêncio se fez e as pessoas que se comprimiam na sala, saíram trazendo à frente, o surdo e sua dor. Em seguida, surgiram dois carros, como se fossem macas, compridos e altos, e sobre eles as coroas de flores foram colocadas. Era início do ano. Tempo em que o surdo começa a se aquecer. Tempo em que o grande povo trabalha a sua fantasia. E ali estava ele, melancólico, de luto, sem palavras. Inesperadamente, do meio do povo, como mágica, inúmeros estandartes brilhantes foram erguidos e de lá surgiram as mais formosas mulheres. Por mais que demostrassem tristeza e cansaço, seus rostos mantinham-se fielmente belos. Era à tarde e a alameda já se preparava para receber os últimos visitantes do dia. O carro das flores encabeçava o cortejo, vindo a seguir a ala das porta-bandeiras. Recendia na tarde o aroma das flores e o perfume das mulheres tristes. Impiedoso, o surdo permanecia no seu silêncio, carregando na sua dor, um ritmista do realismo mágico. Ali tudo era realismo.

Despedia-se de um companheiro. Um paulista-bexiguense. Um notável sambista. Um ilustre compositor de música brasileira. Geraldo Filme de Souza. O Geraldo Filme, da Escola de Samba Vai-Vai. Não houve discursos. Apenas aplausos e a lembrança da missa de sétimo dia. E, já distante, a dor do surdo.
Celso Alencar*
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* Poeta paraense radicado em São Paulo, autor de "O primeiro Inferno e Outros Poemas", "O Pastor", "Os Reis de Abaeté", "Arco Vermelho", "Salve, Salve" e outros.É membro do Conselho Municipal de Cultura e diretor da União Brasileira de Escritores

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