terça-feira, 18 de outubro de 2005

A insuspeitável leveza das vestais

por João de Deus Corrêa*

As criações mitológicas têm uma força extraordinária. São forças ancestrais de preservação da nossa natureza tribal que deram condições de convivência com nossos pares, pois atuam como uma espécie de contrato não escrito, mas ativamente radical. Elas ficam numa reserva dentro de nós e só ganham corpo quando nos avaliamos em situações extremas; então emergem em forma de atitudes de devoção, como agiam as sacerdotisas que se dedicavam ao culto da deusa Vesta, por isso denominadas vestais pelos romanos.

Marcos na história

Em vários momentos nosso lado vestal se manifesta; quando elegemos algo para alvo de nossa ira, muitas vezes impulsionada pela falta de condições de fazer qualquer coisa; com freqüência movida pela culpa de haver omitido. Por que nada fiz para impedir essa tragédia ou tramóia? Por que não fui para as ruas protestar? É o santo direito de perplexidade e conversão, outro daqueles princípios ancestrais, sempre associado à justiça, aliás, outro padrão fundador, não importando se hipócrita ou não.

A história recente está marcada por esses ‘surtos de vestal’, infelizmente atropelando princípio maior, a verdade, tão difícil de ser alcançada pelos dispositivos humanos de observação e julgamento. Os exemplos falam por si: o atentado de 11 de setembro de 2001 sofrido pela mesma nação que incinerou Hiroxima e Nagasaki – dois surtos de justiciamento – em agosto de 1945; os três, movidos por essa perplexidade de vestal. Sem ir longe, basta lembrar o ‘apedrejamento’ dos donos da Escola Base e do senador Ibsen Pinheiro, em espetáculos lastimáveis de pré-julgamento e execução, montado sobre o palco dos meios de comunicação – outras clássicas vestalisses. Jornalistas têm feito de seus espaços verdadeiros cadafalsos, têm se afogado na ira, a pretexto da missão de “cão de guarda” da sociedade, quando sabemos que tudo não passa de notória auto-promoção em prol das vendas do veículo. Eles se vêem como “pautadores” do bem comum, quando nada mais fazem do que executar as propostas de pauta de quem tenha um “peixe” a negociar.

Ópera bufa

Desde 6 de junho estamos vivendo num cenário de ópera, data em que a Folha de S. Paulo, com pompa e circunstância, divulgou a entrevista-mãe pautada e conduzida pelo sr. Roberto Jefferson. Dois dias depois parecia que os veículos eram os pais do ovo de serpente: todos cacarejando ‘postura’. Um ovo podre, com todos os atributos de tal engenho e arte, como se pode demonstrar pontualmente:


Nenhuma originalidade noticiosa – basta lembrar a prorrogação do mandato de José Sarney, sob suspeita de ser às custas de centenas de concessões radiofônicas; a manobra de alteração da Carta Magna para que o sr. FHC fosse reeleito (falou-se em um precinho camarada de R$ 200 mil, per capita). Nem é preciso detalhar os casos Fonte/Cidam, Banco Nacional, Banco Econômico, quando bilhões de reais foram para bolsos da elite.

Nenhuma certeza – é suficiente recordar que a fonte disse explicitamente não ter qualquer prova dos dolos.

Nenhum compromisso com a cidadania – viu-se, de imediato, que se tratava de suicida político, movido pelo ódio, só reagindo ao ser acusado de estar por trás da ‘propinagem’ nos Correios, esta, sim, documentada cinematograficamente e depois confirmada por depoimentos diversos, inclusive do próprio.

Nenhum ato heróico – a ‘deduragem’ estava garantida pela segurança de uma aposentadoria substancial – quando se sabe que esse trabalho ‘enorme’ em Brasília, é arejado por duas grandes férias no ano.

Nenhuma bravura ideológica – o denunciante confessou a prática do ‘caixa dois’ em seu partido e acusou os demais; logo se soube do caso do PSDB, implicando o próprio presidente “vestáltico”, Eduardo Azeredo.

Nenhum sentido figurado – a brancura imaculada do ‘ovo podre’ nada tinha da limpidez sugerida pela cor. No entanto, é o que afirmam os veículos, seguidos por leitores-eco que tomam como verdades comprovadas, hipóteses, antes mesmo de as autoridades empenhadas no discernimento do caso se darem por satisfeitas.

Sacerdotisas ou paspalhos?

Aqui se quis levantar apenas um discreto véu da prudência. Um país que já passou pelas experiências notórias de ‘injusticiamento’ como o nosso, não pode se dar ao luxo de ficar fumando esse ‘baseado’ que já vem ‘malhado’ com o fel da alcagoetagem de quem morre atirando. Temos lições dolorosas demais para nos alertar, no recente contexto nacional; uma delas foi a ditadura última. A democracia foi das maiores vítimas desse massacre da opinião pública, quando ‘revoluções’ e ‘revolucionários’ diversos a espezinharam aqui e o povo ingênuo também aplaudia – sustentados por ‘inteligências’ e veículos perplexíssimos, todos.

A nossa fúria de vestais tende a nos pregar peças, justamente por ser fúria. Estamos nos travestindo de sacerdotisas do bem, mas não passamos de paspalhos nas mãos de veículos mercenários e colunistas boquirrotos, muitos deles só “atores”, como políticos vistosos na CPI, que têm como ‘competência’ apenas o dom púbere da inflamação que atrai holofotes, engravidando o país de sacerdotisas com os pés de barro. Usam as mesmas armas e arrogância da época da Escola Base, quando chegaram a insuflar a população com a bandeira da pena de morte (Hebe Camargo); por pouco a turba não executou a sentença, aliás, como o fez recentemente a também ‘vestáltica’ Scotland Yard contra um brasileiro que saldou com a vida o crime racista de não ter os padrões genéticos tão ao agrado dos súditos da rainha – os mesmos da nossa elite “Daslu”.

Uma coisa é o julgamento de quem pode fazê-lo por direito e domina o protocolo exigido pelo campo específico de operação, incluindo as devidas comprovações. Outra, é a ‘performance’ para a platéia, tanto de políticos quanto de jornalistas, colunistas e a claque sofrível desses últimos, os “ledores”. Fiquemos – agora vestalticamente – com a velha e eterna lição de Victor Hugo (da literatura), pelo menos para que não sejamos carimbados pela fétida produção dos ovos podres – de podres poderes da irresponsabilidade: “A franqueza não consiste em dizer tudo o que se pensa, mas em pensar em tudo o que se diz”.
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João de Deus Corrêa é jornalista.
Fonte: Correio Caros amigos - Edição nº 222 - 4 de outubro de 2005.

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