terça-feira, 18 de outubro de 2005

Irmandades Negras: Estratégias de Resistência e Solidariedade

Professora Doutora Antonia A Quintão[1]
E-mail: antoniacezerilo@uol.com.br

As irmandades apresentaram sempre um caráter social e devocional. O fato de serem autorizadas e protegidas pela ação pessoal de reis eclesiásticos fez com que muitos classificassem essas associações como ‘instrumento de alienação’ dos negros.

É fundamental, e se constituiu em um dos propósitos da minha pesquisa, chamar a atenção para um aspecto muito importante: se a classe senhorial e as elites quiseram utilizar as irmandades como meio de controle e de integração do negro numa sociedade escravista, este soube transformá-las num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto racial, conseguindo dessa forma salvar sua identidade e sua dignidade.

Quando comecei a pesquisar a Irmandade do Rosário de São Paulo, me surpreendi com a grande participação desses irmãos num movimento abolicionista de São Paulo pouco conhecido, chamado Movimento dos Caifazes, liderado por Antônio Bento. O grupo tinha uma estratégia muito interessante: eles se infiltravam nas fazendas do interior do estado, principalmente em cidades onde sabiam haver tortura e violência flagrantes contra o negro, fazendo-se passar por religiosos ou pedintes para conquistar a confiança dos negros. Em seguida, buscavam trazê-los para a capital, onde permaneciam escondidos em estabelecimentos comerciais e igrejas, como a própria Igreja do Rosário. Posteriormente, eram levados para o Quilombo do Jabaquara, em Santos, onde eram encaminhados para o trabalho assalariado.

Palavras Chaves: negro, irmandades, resistência

Introdução

“Desde o descobrimento das Minas até o tempo do indiscreto e inconsiderado estabelecimento das Irmandades de Pretos e Pardos, eram este indivíduos humildes e moderados; Os pretos não ousavam levantar os olhos ou responder com tom mais alto a seus senhores nem ainda a qualquer branco; Os pardos tinham por grande honra quando algum branco se servia deles e louvava o seu préstimo. Todos reconheciam a humildade e o abatimento da sua condição e o respeito que deviam aos brancos. Nos exercícios da Religião eles ouviam a Santa Doutrina com muita devoção, edificavam-se em ouvir os sermões e assistir os ofícios Divinos, tinham a maior veneração aos párocos beijando-lhes as mãos. Esta educação os continha. Ela devia continuar como a mais justa para a perfeição católica, e a mais precisa e útil para o equilíbrio e conservação da ordem civil. Porém, depois que se estabeleceram as ditas Irmandades animaram-se do espírito de intriga, revestiram-se de arrogância, e mudaram a humildade e abatimento que lhes é próprio em soberba e desaforo. Insultam os Brancos, desprezam os Párocos; arrogam-se isenções e privilégios, tem da sua parte as justiças, porque todos os escrivães e oficiais das Auditorias são senhores de uns e apaniguados de outros... As Irmandades dos pretos e pardos são as mais arrogantes, soberbas e descomedidas, já porque muitos dos pardos são abundantes e dotados de préstimos com que adquirem a benevolência e proteção de pessoas poderosas, já porque muitos dos pretos tem a proteção e assistência de seus senhores que fazem timbre e ponto de honra de sustentar e defender as pretensões das irmandades em que os seus escravos são irmãos, de sorte que estes indivíduos destituídos por sua condição de figurarem ou terem autoridade alguma, se consideram em uma grande figura quando se alinham...”[2]

O estudo do universo religioso dos africanos da diáspora, daqueles que foram arrancados a força da sua terra e trazidos para a América Portuguesa, nos revela a maneira como se inseriram na sociedade brasileira e o produto, a síntese desse encontro, que não é homogêneo, nem uniforme, mas marcado por inúmeras tensões e contradições.

Quando a religião é transportada para a América, ela é reconstituída de uma maneira diferente, fragmentária, de acordo com a realidade encontrada.

Não há mais família, nem relação de parentesco. Não há mais liberdade.

No catolicismo colonial brasileiro podemos distinguir dois aspectos: o catolicismo na prática do culto oficial da Igreja, principalmente os ritos sacramentais, e o catolicismo efetivamente vivido pelo povo.

De um lado, os ritos sacramentais foram impostos, pois todos os africanos deveriam ser batizados nas costas da África ou ao chegarem ao Brasil, tendo ainda a obrigatoriedade de assistir as missas dominicais (freqüentemente essas exigências eram desrespeitadas pelos senhores).

De outro lado, a religião católica praticada pelo povo, sem nenhuma obrigatoriedade expressa, mas presente nas casas dos senhores de engenho, em seus oratórios, nos nichos das ruas, nas procissões, nas imagens dos santos.


I - As Irmandades Religiosas: estrutura de funcionamento.
O catolicismo tradicional foi implantado com a colonização portuguesa e apresentava como aspectos principais o seu caráter leigo, social e familiar. Leigo porque a direção e organização das associações religiosas mais importantes, como as irmandades, estavam nas mãos dos leigos. Social e familiar porque havia uma estreita interpenetração da religião com vida social e familiar.[3]

A religião era o núcleo de convivência da sociedade. Festa e manifestações religiosas constituíam uma forma de reunião social. As procissões e festas religiosas quebravam a monotonia e a rotina da vida diária, sendo muitas vezes uma das poucas oportunidades para o povo se distrair e divertir. [4]

As irmandades eram instituições regidas por um estatuto, o compromisso, que deveria ser confirmado pelas autoridades eclesiásticas e pelos monarcas. Nele estavam contidos os objetivos da irmandade, o seu funcionamento, as obrigações de seus membros, assim como os direitos adquiridos ao se tornarem membros dessas associações.
A principal característica das irmandades neste período era a sua autonomia. Através da Mesa Administrativa procuravam gerir todos os seus negócios e decidiam sobre todas as questões internas e externas.

A mais famosa dentre as inúmeras irmandades de pretos é a de Nossa Senhora do Rosário. Desde os século XV e XVI era sob essa inovação que em Portugal se congregavam os homens negros. Segundo Augusto de Lima Júnior, as imagens de santos negros foram introduzidas em Portugal por volta do século XI. [5]

No Brasil, os negros tinham como patronos Santa Efigênia, São Benedito, Santo Antonio de Catagerona, São Gonçalo e Santo Onofre, todos considerados santos negros e que, por isso mesmo, gozavam de grande popularidade.

São Benedito é o mais popular dentre os santos negros e o seu culto, desenvolvido na Europa, alcançou imensa aceitação no Brasil, inclusive entre população branca. [6]. No entanto, a devoção à Nossa Senhora do Rosário supera todas as demais. Seu culto foi divulgado pelos dominicanos, que também popularizaram a recitação do terço.

A irmandade dos negros dessa devoção surgiu em Portugal de uma transformação gradativa das irmandades de brancos. O aparecimento dessas associações foi duramente criticado pelos irmãos do Rosário dos brancos que acusaram os dominicanos por terem permitido que os negros tivessem uma irmandade inteiramente de sua gente.

Essas associações, além das atividades religiosas que se manifestavam na organização de procissões, festas, coroação de reis e rainhas, também exerciam atribuições de caráter social como: ajuda aos necessitados, assistência aos doentes, visita aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os maltratos de seus senhores e ajuda para a compra da carta de alforria:

No entanto, uma das atribuições mais lembradas nos capítulos dos estatutos ou compromissos das irmandades refere-se a garantia de um enterro para os escravos, frequentemente abandonados por seus senhores nas portas das igrejas ou nas praias para que fossem levados pela maré da tarde:

“Em falecendo algum nosso irmão ou irmã ou algum dos seus filhos menores e vindo sepultar-se ou nesta nossa igreja ou alguma desta povoação e indo na nossa tumba se tocará o sino e todos os irmãos que morarem na povoação e seus arredores, sendo avisados pelo Procurador se ajuntarão na nossa igreja, para que saiam em ordem acompanhando a cruz e guião com suas opas brancas e tochas ou velas nas mãos e pela rua irão todos com muita compostura e modéstia até a parte onde estiver o corpo do irmão ou irmã defunta e daí irão com a mesma ordem até a igreja donde se fôr sepultar.”(Constituição 8ª - Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosários dos Homens pretos da Freguesia de Sto. Antonio do Cabo, Bispado de Pernambuco).

Os brancos eram aceitos nas irmandades, porém, estas tomavam várias medidas para estabelecer o seu campo de atuação.

“Nesta irmandade se admitirão homens e mulheres brancos porém, não terão voto na irmandade, não se intrometerão nas suas determinações, não poderão ser eleitos para servirem na Mesa, e ainda que queiram a sua custa fazer alguma de nossas festas não rejeitaremos, porém a assistência ou presidência dela será de nossos oficiais pretos.” (Constituição l5a.- Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosário dos homens pretos da Freguesia de Sto. Antonio do Cabo, Bispado de Pernambuco.)

A função de escrivão e tesoureiro eram, em algumas irmandades, exercidas pelos brancos. A pobreza e o analfabetismo de boa parte da população negra fundamentam essa exigência. No entanto, no final do século XVIII, havia pretos e mulatos capazes para exercerem estas tarefas:

“É o ofício de tesoureiro de muita consideração na Irmandade, e assim queremos que sirva sempre esta ocupação um homem branco, o qual a Mesa elegerá na eleição que se fizer e havendo algum que seja irmão desta Santa Irmandade, sendo pessoa capaz, esta preferirá em primeiro lugar.”

(Capítulo 9º - Compromisso da Irm. de Santo Elesbão e Santa Efigênia da cidade do Rio de Janeiro, l767)

É importante destacar a presença das mulheres, que participavam da mesa administrativa, exercendo inclusive a função de escrivã.

“Dos oficiais que haverão nesta irmandade: um juiz, um escrivão, dois procuradores, doze mordomos (seis criolos e seis angolas), uma juíza também de Mesa, uma escrivã, e doze irmãs ou mordomas, e destas também serão seis criolas e seis angolas. O juiz e escrivão sempre será um deles forro e outro cativo, o mesmo se guardará com a juíza e escrivã.(Constituição 6a.- Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosário dos Pretos de Sto. Antonio do Cabo, Pernambuco, l767 )

As irmandades formadas por africanos apresentavam algumas especificidades:

“Todo o irmão ou irmã da nação de Angola, que por seus merecimentos a Irmandade eleger para Rei, ou Rainha de Nossa Senhora, se elegerão em pessoas isentas de cativeiro, só sim servirão os sujeitos, não havendo libertos, ou forem esses insuficientes de ocuparem o dito cargo, porque destes a incapacidade faz perder os méritos do dito cargo. Serão obrigados tanto o Rei, como a Rainha a darem de estipêndio cada um ano quatro mil réis, e serão os ditos obrigados a convocar as suas nações para tirarem esmolas para as obras de Nossa Senhora todas as vezes que pela Mesa determinar-se-lhe.”(Cap.IX - Compromisso da Irmandade de Nossa Sra. do Rosário, Bispado de Pernambuco - l785)

Viajantes estrangeiros que visitavam o Brasil nesse período ficavam admirados com a pompa e cerimônia das festas organizadas pelas irmandades, que possibilitavam aos escravos momentos de lazer, de diversão, e de convívio social.

“Porquanto vimos que a experiência tem mostrado que um estado de folia nas irmandades pretas serve de muita felicidade assim para os ânimos dos irmãos, como para acudirem de novo muitos de fora, queremos que haja um estado de Imperador, Imperatriz, Príncipe e Princesa, somente com a diferença que o Imperador e mais pertencentes ao seu cargo hão de ser por triênio” (Capº 29- Compromisso da Irm. de Santa Efigênia e Santo Elesbão, Bispado do Rio de Janeiro,l767)

No compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios do Rio de Janeiro, composta por africanos da Costa da Mina, observamos os irmãos assumindo a promessa de não executarem danças com gestos obscenos ou indecentes nas festividades de N.Sra.do Rosário, o que significa que a Pastoral contra festas ilícitas promulgadas em l747 pelo bispo do Rio de Janeiro, Frei Antonio de Desterro, havia sido insuficiente para coibir tais “abusos”.

“...uma pastoral por se fazerem alguns ajuntamentos de pessoas de um e outro sexo, com pretexto de se festejar a Maria Santíssima ou outra alguma imagem, ornando para isso altares com músicas e instrumentos e outras pompas, e que depois destas ações se empregavam as ditas pessoas de um e outro sexo em bailes batuques, saraus, divertimentos totalmente alheios ao louvor de Deus e sua Mãe Santíssima, concorrendo muita gente, sendo isto ocasião de escândalo parecendo estes obséquios com os que os gentios faziam a seus falsos deuses, misturados de ações indecentes e escandalosas. Declaramos semelhante exercício por perigoso, contrário aos bons costumes e aplauso de N.Sra. ou de qualquer outro santo e como tal ilícito. Pelo que mandamos com pena de excomunhão que se proiba semelhantes ajuntamentos, festejos e batuques, e na mesma pena incorrerão todas as pessoas que assistirem a eles ou concorrerem com música, casa ou outra alguma cooperação.”[7]

Em Recife, por ocasião das festividades da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, dançava-se o maracatu, que demonstra o encontro entre índios e negros na região, e que também causava suspeitas nas autoridades eclesiásticas. Na Mesa administrativa desta irmandade predominavam os negros e negras forras, que desenvolviam atividades econômicas e investiam boa parte de seus rendimentos nas cerimônias religiosas, sendo freqüentemente eleitos para rei e rainha do Congo.

É importante destacar que os compromissos não revelavam todas as atividades das irmandades envolvidas em muitos segredos e silêncios:

“...e se quiser o Imperador fazer alguma Mesa ou convocação de parentes, assim irmãos como não irmãos, para alguma determinação do seu estado, lhe concederá o juiz com a sua Mesa o fazê-la no nosso consistório sem impedimento algum, para não convocar tanta gente em sua casa que faz suspeita entre a vizinhança.”(Acrescentamento do capítulo 3º - Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Bispado do Rio de Janeiro, l767).

Algumas irmandades eram bastante procuradas por negros e pardos que queriam ingressar como irmãos, e as mais requisitadas e prestigiadas costumavam ser também as mais exigentes e seletivas quanto a quem admitiam como membro.

Crimes e vícios eram comumente mencionados como motivo para remoção do cargo ou expulsão da confraria. O envolvimento em roubos ou fomento de discórdia também poderiam levá-los a exclusão, a menos que se arrependessem.

Geralmente cabia ao juiz fazer a punição aos faltosos, que costumavam ter três chances para se arrependerem. A penalidade para essas ofensas era comumente algumas preces ou trabalhos de caridade.

Eram também excluídos aqueles irmãos que, tendo condições, não pagavam as taxas exigidas pela irmandade, não compareciam aos enterros, não participavam das atividades religiosas, desobedeciam as normas do compromisso, pertubavam as reuniões da Mesa, faziam exigências injustas, tentavam interferir nos resultados das eleicões, traziam prejuízos a irmandade e revelavam os segredos discutidos nas reuniões da Mesa.

Outro aspecto a ser destacado é que uma mesma irmandade podia hospedar outras duas ou três, que colocavam seus santos nos altares laterais. Isso se observou principalmente na Irmandade do Rosário, por ser a mais rica, a mais poderosa e a mais numerosa na sociedade colonial. Essa organizacão interna se revelava sobretudo nos capítulos ou artigos que descreviam as procissões ou os enterros.

Assim temos que nas procissões ou enterros realizados pela Irmandade de N.Sra. do Rosário da vila de Goiânia, bispado de Pernambuco, saíam inicialmente a Irmandade do Senhor Jesus dos Martírios, por ser a mais recente, atrás dela a Irmandade de Santo Antonio de Catagerona, em terceiro lugar a Irmandade de São Benedito, e finalmente a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Prevalecia, portanto, o critério da antiguidade.

No que se refere a organização econômica temos que as irmandades possuíam várias fontes de renda: taxas de admissão, contribuições dos oficiais das festas, as esmolas que eram pedidas por irmãos devidamente autorizados, os anuais, as doações dos benfeitores, os aluguéis de propriedades e de terras.

A construção de prédios bem equipados e ornamentados, revela a importância das igrejas para os negros, enquanto símbolo de prestígio e espaço de vivência religiosa e social.

As festas religiosas, os pomposos funerais, o socorro aos irmãos mais necessitados também eram indicativos da habilidade das irmandades para gerenciar os seus bens. Para isso cercavam-se de vários cuidados e estabeleciam várias normas para regular a atividade do tesoureiro e do procurador:

“...assentamos que os ditos Procuradores ou outro qualquer nosso Irmão, ainda que seja o Juiz da Mesa, não tenha em sua mão dinheiro algum da Irmandade, porque todo entregará em Mesa, dando dele conta, para se lançar no cofre de que se fará assento no livro da receita, nem do dinheiro algum
poderão dispor uma quantia maior de dez tostões, sem ser com o consentimento da Mesa, do nosso escrivão e do procurador. E também enquanto a nossa igreja não estiver de toda acabada e paramentada, senão emprestará, nem dará a juro dinheiro algum da Irmandade. E a Mesa que assim o não observar pagará de suas bolsas a dita quantia que tiver emprestado ou dado a juros, e além disso satisfarão mais a Irmandade de condenação, trinta e dois mil réis.(Constituição l3ª - Irmandade de Nossa Sra. do Rosário, bispado de Pernambuco, l767).

De todos os gastos das irmandades, o que mais causava polêmicas e conflitos era o pagamento aos párocos, devido aos excessos que então se verificava, sobretudo referente as conhecenças.

A taxação das conhecenças era um direito próprio dos párocos, visando à sustentação de sua dignidade sacerdotal e se traduzia em tributo pecuniário cobrado aos paroquianos por ocasião da desobriga quaresmal.

Variavam de acordo com as dioceses e incidiam sobre as pessoas que cumpriam o preceito da confissão ou da comunhão anual da páscoa.

Eram frequentes também as acusações dos párocos às irmandades. Primeiro, porque empregavam seus recursos nas suas próprias capelas e igrejas, recusando-se a auxiliar com as despesas dos ofícios religiosos das matrizes. E ainda, porque celebravam suas festas e ofícios sem a autoridade e a assistência dos párocos, impedindo-os de receber os emolumentos e desfrutar das regalias da sua posição hierárquica.

É importante destacar que nem todas as fontes de rendas e despesas eram mencionadas pelas irmandades. O auxílio dado aos irmãos mais necessitados, a ajuda aos doentes, o alimento que se levava ao presos raramente são mencionados nos capítulos dos compromissos.

O valor da taxa de admissão e outras contribuições pagas pelos irmãos, variavam de acordo com a cor do admitido. Os irmãos brancos eram obrigados a contribuir com uma quantia mais elevada que os pardos e negros. Essa mesma distinção não se verificava em relação ao sexo dos irmãos. Homems e mulheres pagavam a mesma importância, revelando uma certa igualdade e prestígio das mulheres nessas associações.

A presença feminina marcante é um dado importante para a caracterização das irmandades negras e pardas, indicando um contraste com as associações de brancos, cuja predominância parece ter sido sempre masculina.

O ingresso nas irmandades representava reconhecimento social, possibilidade de contatos, e uma tentativa de contornar os preconceitos sociais e raciais que caracteriza a sociedade brasileira.

O número de missas rezadas pelas almas dos irmãos mortos variavam de 02 a 50, e era indício da situação financeira das irmandades; as mais ricas estabeleciam um maior número de sufrágios. A Irmandade das Almas da Vila de Nossa Sra. dos Remédios de Paraty, bispado do Rio de Janeiro, fêz em l78l uma representação ao Rei, pedindo autorização para dobrar o valor cobrado para a entrada e para os anuais, a fim de cobrirem as despesas que se faziam com as missas celebradas pelos irmãos falecidos, que de dez tinham dobrado para vinte. Neste mesmo documento solicitam a aprovação real, para a decisão que haviam tomado, de não receberem irmãos que excedessem a quarenta anos de idade, sem que dessem uma esmola a arbítrio da Mesa.

Além do custo das missas, havia a taxa a ser paga pelo aluguel do esquife, caso a irmandade não o tivesse, o pagamento para a abertura das covas e para o capelão da irmandade. Ficava também estabelecido nos compromissos, que mesmo aquele que não pertencesse a irmandade poderia ser enterrado por ela, desde que pagasse uma taxa mais elevada, determinada nos compromissos, e se dispusesse a ser conduzido por negros;

“Em querendo algum irmão por seu falecimento que o seu corpo seja conduzido na tumba da nossa Irmandade, não haverá dúvida alguma, senão em não ser conduzido por irmãos de superiores cor, e sim será pelos nossos irmãos conduzidos.” (Capº 39 - Irm. de N.Sra. do Rosário, Bispado de Pernambuco, l783)

Em l740 um grupo de africanos, originários de Moçambique, da Costa da Mina, da Ilha de São Tomé e de Cabo Verde, homens e mulheres, alguns libertos, outros escravos, solicitaram ao bispo D. Antonio de Guadalupe licença para instituirem a sua irmandade, sob a invocação de Santo Elesbão e Santa Efigênia.

Antes de lhes autorizar, consultou o vigário da Candelária, que manifestou a sua preocupação com a multiplicidade dessas associações, já que os minas também tinham erigido a sua irmandade do Menino Jesus, na capela de São Domingos, congregando mais de setenta irmãos e irmãs.

II - O papel das mulheres

Desde os últimos anos do século XVIII, observa-se o costume de os membros das irmandades participarem simultaneamente de várias associações. As mulheres, principalmente, ingressavam em diversas irmandades.
Se nas associações mineiras, desde os últimos anos dos setecentos, o crescente aumento de mulheres indicava uma maior estabilidade social, a presença das mulheres nas irmandades paulistas do final do século XIX demonstra sua participação ativa e marcante na vida política e social.
O primeiro compromisso da Irmandade do Rosário prevê a entrada de mulheres, mas ao mesmo tempo faz algumas restrições:

“O Juiz e o escrivão desta Irmandade terá cuidado de ver as pessoas que admite por irmão, principalmente as mulheres, se são honestas e capazes, e os homens de procedimento e trato bom” (Capítulo 17º).

O artigo 13º do Compromisso estabelecia no seu parágrafo único, que as irmãs de mesa, em razão de seu sexo, eram impedidas de prestar outros serviços à irmandade, por isso, ficavam incumbidas de pagar uma jóia de dez mil réis e de vestir um anjo para acompanhar a procissão que, no dia da festa da padroeira, percorria as ruas da cidade.

Ajudar a organizar as festas e arrecadar esmolas eram as atribuições oficiais das mulheres nas irmandades, contudo, temos exemplos como o de Rufina Maria do Ó, que participava ao mesmo tempo, da Irmandade do Rosário, da Irmandade de São Benedito e, ainda, da Irmandade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, associações nas quais os caifazes [8] tiveram uma efetiva participação.

Rufina Maria do Ó: mulher negra.

Rufina alistou-se como irmã simples na Irmandade de São Benedito, no dia 19 de agosto de 1872. Pagou a jóia de 640 réis e, neste mesmo ano, foi eleita rainha para as festividades de Nossa Senhora do Rosário, conforme está registrado no livro de assentamento de irmãs libertas. Em 1884 passou deste para o livro de assentamento de irmãs, pagando o seu anual até 1891.

Em 1876 Rufina foi eleita irmã de mesa na Irmandade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, conforme consta no Livro de Atas desta irmandade. Novamente foi eleita irmã de mesa para o ano de 1888, quando o conflito entre esta Irmandade e o vigário José de Camargo Barros havia se intensificado tanto que o próprio Antonio Bento chegou a participar de algumas reuniões à convite dos irmãos de Santa Efigênia.

Desde 1879 havia ingressado também na Irmandade de N. Sra. do Rosário, sendo eleita irmã de mesa para o ano de 1884. Em 1892 foi eleita Juíza da irmandade, em sessão realizada no dia 18 de dezembro.

A presença de Rufina Maria do Ó em diversas irmandades negras não é um caso isolado. Posteriormente citarei outros exemplos. O que, no entanto, chama a atenção é observar o grande trânsito de irmãos, de uma irmandade para outra e o papel desempenhado por alguns, que atuavam como contacto ou ponte de ligação entre essas associações.

Ainda podemos encontrar referência à Rufina na ata da sessão extraordinária, realizada no dia 14 de outubro de 1894 na Irmandade do Rosário. Nesta sessão, o irmão Hilário Moraes Torres, fala sobre a suspensão às irmãs mesárias e sobre a irmã Rufina, à qual faz uma censura, citando o parágrafo 13 do artigo 7º, Capítulo 2º. Segundo este parágrafo cabe à Mesa Administrativa exercer uma rigorosa vigilância sobre os empregados da irmandade e suspendê-los quando remissos no cumprimento de seus deveres.

É muito difícil, à partir dessas informações tão reduzidas, saber com clareza as razões dessas suspensões. No entanto, é muito provável que Rufina Maria do Ó, como tantas outras irmãs, que permanecem anônimas, fizeram pelas irmandades muito mais que arrecadar esmolas e vestir um anjo para acompanhar a procissão no dia da festa da padroeira. Podemos levantar a hipótese de que, além do sentimento religioso, outros objetivos motivaram essas negras escravas ou libertas a participarem tão ativamente dessas irmandades.

Quero ainda destacar que as irmãs escravas, quando se tornavam libertas, passavam do livro de cativas para o livro de libertas e, posteriormente, para o livro de assentamento de irmãs, conforme revela a documentação referente à irmandade de São Benedito.

a) Florisbela Thereza de Jesus vem do livro de escravos e alistou-se como irmã de Mesa perpétua no dia 17 de abril de 1867.

b) Luiza, que foi da casa do finado Major Francisco José de Azevedo e passou das fls. 288 do Livro de Cativas, no qual consta que está pago seus anuais até 1864.
c) Rita Maria do Espírito Santo, irmã desde muito tempo, tinha assento no Livro de Cativas e passa para este, por ser atualmente livre, aos 10 de junho de 1859, em que pagou o anual.

Outras irmãs, registradas inicialmente no Livro de Libertas (Livro nº 3), passavam deste para o Livro de Assentamento das Irmãs.

a) Florisbela Augusta de Oliveira Mendes passou do Livro nº 3, fl. 175, como irmã de mesa perpétua em 1884. Ingressou também como irmã de mesa perpétua no Livro de Cativas (nº 3) aos 12 de maio de 1861, tendo pago de entrada 2.000 réis.

b) Maria Gertrudes Cavalheiro, passa do Livro nº 3 fl. 179, como irmã simples em 1884. De acordo como o Livro nº 3, alistou-se como irmã simples a 23 de outubro de 1872 tendo pago a quantia de 640 réis.

c) Maria Cândida Cerqueira Leme passa do Livro nº 3 fl. 177, como irmã de mesa perpétua em 1884. De acordo com o Livro nº 3 entrou como irmã simples aos 19 de maio de 186l tendo pago a entrada de 640 réis, tendo passado a irmã de mesa perpétua em 1862 quando pagou a quantia de 2.000 réis.

Muitas irmãs, por questão de devoção ou para pagar promessa, preocupavam-se em alistar seus filhos nas irmandades. A iniciativa partia das mães, não constando no livro de registro o nome dos pais.

a) Amélia Emydia da Luz (2 anos de idade), filha de Francelina Maria da Luz, alistou-se no dia 30 de abril de l866, como irmã simples e pagou 640 réis.

b) Benedita Emydia da Luz, filha de Francelina Maria da Luz, alistou-se no dia 24 de abril de l867, como irmã simples e pagou 640 réis. Faleceu em 1870.

c) Lidia do Carmo Guedes, menor de 2 anos, filha de Marciana, alistou-se a 28 de maio de 1871, como irmã simples e pagou a jóia de 640 réis. Faleceu em 1872.

d) Adelina Eugênia da Silva, menor, filha de Custódia Francisca da Silva, assentou por promessa como irmã de mesa perpétua em junho de 1863, e deu de jóia a entrada de 2.000 réis.

Finalmente quero recuperar o nome de mais algumas irmãs que, como Rufina participaram ativamente em mais de uma irmandade de negros nas últimas décadas do século XIX: Silvana Maria do Rosário, Rita Maria do Bonfim, Maria do Carmo Baptista, Marciana do Carmo Guedes, Athanásia Umbelina Xavier, Florência Maria das Dores,Virgínia Benedita do Espírito Santo, Maria Rita dos Santos.

III - A Irmandade da Boa Morte

A fundação da Irmandade da Boa Morte na cidade de Cachoeira, estado da Bahia, em 1820, não poderia deixar de ser mencionada nesta pesquisa, pois também se constitui numa das mais admiráveis formas de resistência ao regime escravista.

Constituída por mulheres negras e mestiças, escravas e libertas, seus objetivos principais eram a compra da carta de alforria para a libertação de seus filhos, maridos, netos e agregados, ou ajudar a dar-lhes fuga encaminhando-os para o Quilombo do Malaquias, em Terra Vermelha, zona rural da cidade de Cachoeira e a preservação dos rituais das religiões de matrizes africanas expressamente proibidos durante a escravidão. A Irmandade da Boa Morte, cujos rituais de origem africana permanecem secretos até os dias de hoje, foi responsável pela fundação da primeira Casa de Candomblé Keto no Brasil.

Estas mulheres negras procuraram se organizar dentro dos limites impostos pela escravidão e, atráves da Irmandade da Boa Morte, criaram um feminismo negro em busca da liberdade e da preservação da sua cultura e da identidade. A compra de cartas de alforrias para várias mulheres era o resultado de muita luta e de um grande esforço coletivo para eliminar uma série de flagelos e sofrimentos que eram impostos a estas: a exploração do trabalho nas lavouras, os castigos, as mutilações, o açoite, os abusos e a violência sexual. [9]

A criação dessa Irmandade demonstra o poder de organização política, do associativismo e a grande solidariedade dos africanos e negros brasileiros, que viria a se manifestar em outras iniciativas nos séculos seguintes. Com o fim da escravidão, as mulheres negras continuam a exercer um papel fundamental na estruturação de suas comunidades, na sobrevivência de sua prole e na reconstrução de sua própria auto-estima enquanto pessoas detentoras de direitos.

Considerações finais:

No final do século XIX generaliza-se o costume do próprio escravo ou escrava encarregar-se dos pagamentos da taxa da inscrição e dos anuais.

Sobre isso manisfesta-se o Compromisso do Rosário ao se referir às funções do procurador:

“Também terá cuidado de saber de que modo vivem os irmãos, as irmãs, e o dinheiro de suas esmolas com que se assentaram, e do mais que der cada ano, de que modo o ganham, porque deve ser dado de bom grado, ou de seu trabalho como Deus manda”. (Capº 8º).

As mulheres não inscritas nas irmandades podiam dispor de alguns direitos através de seus maridos:

“Todas as vezes que morrer a mulher de algum irmão ou filho os acompanhará a Irmandade como todo o aparato, e se lhe dará sepultura, e lhe mandarão dizer as sete missas pela alma da dita mulher” (Capº 15º).

A presença das mulheres nas irmandades refletia as modificações sociais e econômicas que dava-lhes a possibilidade de se tornarem livres através da compra da carta de alforria.

Outras ainda, ao inscreverem seus filhos nessas associações ou mesmo ao pagarem a taxa referente ao ingresso nas irmandades como irmãs de mesa perpétua, evidenciam que era possível não apenas garantir a sobrevivência como também fazer uma pequena economia.

Quanto a Irmandade do Rosário de São Paulo temos que em 1903, a Câmara Municipal declarou de “utilidade pública” o local onde se situava a Igreja do Rosário e esta foi transferida para o Largo do Paissandú, apesar dos protestos dos moradores que tentaram embargar as obras.

Para que não restasse nenhum vestígio da presença da irmandade, nem mesmo o nome foi preservado. Em janeiro de 1905, o Largo do Rosário dos Pretos, como era conhecido, passou a denominar-se Praça Antônio Prado.

Em 1940 o prefeito de São Paulo, Francisco Prestes Maia propôs a demolição da Igreja do Rosário, baseado em três objetivos principais: o primeiro de ordem estética, ou seja, harmonizar a praça com as novas construções do local. O segundo: melhorar a circulação de trânsito com o alargamento da Avenida e a terceira justificativa: transformar a praça num local digno de receber o monumento ao Duque de Caxias. As negociações foram abandonadas com o falecimento do presidente da comissão pró-monumento.

Outros canais de participação política e vivência religiosa foram criados e conquistados pelos negros. Mas a irmandade de N. Sra. do Rosário permanece ainda hoje como um símbolo de resistência e esperança, tal qual a Irmandade da Boa Morte, de São Benedito, de Santa Efigênia e tantas outras, que espalhadas pelo país, continuam figurando como exemplos de nossos mais valiosos e importantes patrimônios culturais.

Notas:
[1] Doutora pela Universidade de São Paulo.
[2] Trecho da Representação dos vigários das Igrejas Coladas de Minas Gerais. AHU. 05/03/1794.
[3] AZZI, Riolando, “Elementos para a história do catolicismo no Brasil” in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 36, 141.
[4] CARDOSO, Manoel da Silveira. “As Irmandades da antiga Bahia”. In Revista de História. Vol. LXVII, nº 95, p. 241.
[5] SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. (col. Brasiliana, 357) p. 08.
[6] Cf. SCARANO, Julita. Op.Cit., p. 18.
[7] Lisboa, AHU, Caixa 149, Rio de Janeiro, Doc. nº 69, 16/06/1781.
[8] Podemos dizer que, se num primeiro momento o movimento abolicionista paulista limitava-se a uma ação parlamentar, a segunda etapa, que se inicia na década de l880 é marcada por uma campanha que conta com a adesão de vários segmentos sociais e que passa a exercer uma ação direta para acabar com a escravidão. Estes ficaram conhecidos como caifazes, em associação com a passagem do evangelho de São João em que sentencia Caifaz: “Vós nada sabeis, não compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo todo não pereça? (Jo. 11,50). E entregou Jesus a Pilatos”. A ação revolucionária dos caifazes deve ser vista a partir de um duplo aspecto: A desorganização do trabalho escravo, que incluía todo o processo de fuga (do incitamento à chegada ao Quilombo do Jabaquara em Santos) e a inserção do negro fugido no mercado de trabalho. A dinâmica e a complementariedade entre esses dois aspectos é que dá um caráter inovador ao movimento dos caifazes.
[9] BENEDITO, Deise. Delírios, delitos & penas. As leis do morro e as mulheres in Afirma – Revista Negra – on line, 05 de março de 2004.
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[1] Mestre e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo; Professora na Universidade Mackenzie e; Autora dos Livros:
Lá vem o meu parente: As irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (Século XVIII). São Paulo : Fapesp/Anna Blume. 2002;
Irmandades Negras: outro espaco de luta e resistência. São Paulo
(1870-1890). Fapesp/Anna Blume. 2002.

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