terça-feira, 18 de outubro de 2005

SOCIALISMO E CULTURA*

Antonio Gramsci, 1916

Saltou-nos à vista há algum tempo um artigo no qual Enrico Leone, da forma complicada e nebulosa que lhe é tão freqüente e própria, repetia alguns lugares comuns acerca da cultura e o intelectualismo em relação ao proletariado, opondo-lhe a prática e o fato histórico, com os quais a classe está se preparando o porvir com as suas próprias mãos. Não nos parece inútil voltarmo-nos sobre esse tema já outras vezes tratado no Grido e que já se beneficiou de um estudo mais rigorosamente doutrinal, especialmente na vanguarda dos jovens, na ocasião da polêmica entre Bordiga, de Napoles, e nosso Tasca.

Vamos recordar dois textos: um de um romântico alemão, Novalis (que viveu de 1772 a 1801), o qual disse: “O problema supremo da cultura consiste em fazer-se dona do próprio eu transcendental, em ser ao mesmo tempo o eu do eu próprio. Por isso surpreende pouco a falta de percepção e intelecção dos demais. Sem um perfeito conhecimento de nós mesmos, não poderemos conhecer verdadeiramente aos demais”.

O outro, que resumiremos, é de C. B. Vico. Vico (no Primeiro corolário acerca da fala por caracteres poéticos das primeiras nações, na Ciência Nova) oferece uma interpretação política do famoso dito de Solón que logo adotou Sócrates enquanto filosofia, “Conheça-te a ti mesmo”, e sustenta que Solón quis com ela exortar aos plebeus, que se acreditavam de origem animal e pensavam que os nobres eram de origem divina a que refletissem sobre si mesmos para reconhecerem-se como iguais, em sua natureza humana, aos nobres, e, por tanto, para que pretendessem ser igualados a eles em direito civil, e nessa consciência da igualdade humana de nobres e plebeus põe logo a base e a razão histórica da origem das repúblicas democráticas da Antigüidade.

Não reunimos estes dois textos por capricho. Nos parece que neles se indicam, ainda que não se expressem e nem de longe definam, os limites e os princípios nos quais devem fundar-se uma justa compreensão do conceito de cultura, também a respeito do socialismo.

Há que se perder o costume e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico no qual o homem não se contempla mais que sob a forma de um recipiente a ser freqüentemente preenchido e sustentado com dados empíricos, com fatos brutos e desconexos que ele terá que, de pronto, classificar no cérebro como em colunas de um dicionário para poder responder, na ocasião oportuna, aos estímulos vários do mundo externo. Essa forma de cultura é verdadeiramente daninha, especialmente para o proletariado. Só serve para produzir desorientados, gente que se crê superior ao resto da humanidade porque tem amontoada na memória certa quantidade de dados e datas colhidos em variadas ocasiões para levantar uma barreira entre si mesmo e os demais. Só serve para produzir este intelectualismo cansado e incolor tão justa e cruelmente fustigado por Romain Kolland e que tem dado luz a um bando inteiro de fantasiosos e presunçosos, mais deletérios para a vida social que os micróbios da tuberculose ou o da sífilis para a beleza e a saúde física dos corpos. O estudantezinho que sabe um pouco de latin e de história, o advogadozinho que conseguiu arrancar uma licenciatura devida à desídia e à irresponsabilidade dos professores, crêem que são distintos e superiores inclusive ao melhor operário especializado, o qual cumpre na vida uma tarefa bem precisa e indispensável e vale em sua atividade cem vezes mais que esses outros nas suas. Isso, porém, não é cultura e sim pedantismo; não é inteligência e sim intelecto, e é justo reagir contra.

A cultura é coisa muito distinta. É organização do eu interior, apoderamento da personalidade própria, conquista da superior consciência por meio da qual se chega a compreender o valor histórico que se tem, sua função na vida, seus direitos e seus deveres. Tudo isso, porém, não pode ocorrer por uma evolução espontânea, por ações e reações independentes da vontade de cada um, como ocorre na natureza vegetal e animal, na qual cada indivíduo se seleciona e especifica seus próprios órgãos insconscientemente, pela lei fatal das coisas. O homem é sobretudo espírito, ou seja, criação histórica e não natural. De outro modo não se explicaria porque, tendo havido sempre explorados e exploradores, criadores de riqueza e egoístas consumidores dela, não se tenha realizado ainda o socialismo. A razão é que só paulatinamente, extrato por extrato, tem conseguido a humanidade consciência de seu valor e conquistado o direito a viver com independência dos esquemas e dos direitos de minorias que se afirmaram antes historicamente. E essa consciência não foi formada sob o estímulo brutal das necessidades fisiológicas e sim pela reflexão inteligente de alguns, primeiro, e logo, de toda uma classe sobre as razões de certos fatos e sobre os meios melhores para convertê-los, na ocasião em que eram de vassalagem, em símbolo de rebelião e de reconstrução social. Isso quer dizer que toda revolução tem sido precedida por um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural, de permeação de idéias através de agregados humanos a princípio refratários e só atentos a resolver no dia-a-dia, na hora-a-hora, e para si mesmos seu problema econômico e político, sem vínculos de solidariedade com os demais que se encontravam nas mesmas condições. O último exemplo, o da Revolução francesa. O período cultural anterior, chamado de Iluminismo e tão difamado pelos críticos fáceis (ingênuos e precipitados)[1] da razão teorética, não foi, ou não foi, ao menos completamente esse revoluteio de inteligências superficiais e enciclopédicas que discorriam sobre tudo e todos com uma uniforme impertubalidade, que acreditassem ser homens de seu tempo uma vez lida a Gran Eciclopedia de D’Alembert y Diderot; não foi, em suma, só um fenômeno de intelectualismo pedante e árido, como o que hoje temos diante de nós e encontra seu maior desdobramento nas Universidades populares de ínfima categoria. Foi uma revolução magnífica por meio da qual, como agudamente observa De Sanctis na Storia della letteratura italiana, se formou por toda a Europa como uma consciência unitária, uma Internacional espiritual burguesa sensível em cada uma de suas partes às dores e às desgraças comuns, e que era a melhor preparação da rebelião sangrenta logo ocorrida na França.

Na Itália, na França e na Alemanha se discutiam as mesmas coisas, as mesmas instituições, os mesmos princípios. Cada nova comédia de Voltaire, cada panfleto novo, era como a chispa que passava pelos fios, já estendidos entre Estado e Estado, entre região e região, e se achavam os mesmos consensos, as mesmas oposições em todas as partes e simultaneamente. As baionetas do exército de Napoleão encontraram o caminho já aplainado por um exército invisível de livros, de opúsculos, derramados desde Paris a partir da primeira metade do século XVIII e que haviam preparado aos homens e às instituições para a necessária renovação. Mais tarde, uma vez que os fatos da França consolidaram de novo a consciência, bastava um movimento popular em Paris para provocar outros análogos em Milão, em Viena e nos centros menores. Tudo isso parece natural, espontâneo aos facilones, mas na realidade seria incompreensível se não se conhecesse os fatores da cultura que contribuíram para a criação daqueles estados de ânimo dispostos a estourar por uma causa que se considerava comum.

O mesmo fenômeno se repete hoje para o socialismo. A consciência unitária do proletariado se formou ou está se formando através da crítica da civilização capitalista, e crítica quer dizer cultura, e não já evolução espontânea e naturalista. Crítica quer dizer precisamente essa consciência do eu que Novalis punha como finalidade da cultura. Já que se opões aos demais, que se diferencia e faz criar uma meta, julga os fatos e os acontecimentos, para além de si e por si mesmos, como valores de propulsão ou de repulsão. Conhecer a si mesmo quer dizer ser o que se é, quer dizer ser dono de si mesmo, distinguir-se, sair fora do caso, ser elemento de ordem, mas não da ordem própria e da própria disciplina a um ideal. E isso não se pode obter se não se conhece também aos demais, sua história, o discurso dos esforços que hão feito os demais para ser o que são, para criar a civilização que hão criado e que queremos substituir pela nossa. Quer dizer ter noção do que é a natureza, e das suas leis, para conhecer as leis que regem o espirito. E aprendê-lo todo sem perder de vista a finalidade última, que é conhecer melhor a si mesmo através dos demais, e aos demais através de si mesmo. Se é verdade que a história universal é uma cadeia dos esforços que tem feito o homem se libertar dos privilégios, dos preconceitos e das idolatrias, não se compreende porque o proletariado, que quer agregar outro eslabão a essa cadeia, não há de saber como, e por que e por quem tem sido precedido e que proveito pode conseguir desse saber.
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[1] Do tradutor
(*) Tradução (do espanhol) de: Josselito Batista de Jesus
Fonte: http://www.lainsignia.org/2000/abril/cul_062.htm

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